sábado, 13 de junho de 2015

Não se passou nada...

Soube da história através de um grupo de mulheres online e tocou-me imenso, pedi à M. para partilhar convosco. Por saber que hà tantas crianças que passaram e que estão a passar pelo mesmo agora mesmo, neste instante e tantos adultos que se calam porque sempre se calaram... foi-lhe ensinado a fingir que não se passou nada. Porque eu também sou uma delas e quero fazer parte do processo de cura. Muito grata à M. pela coragem desta partilha, como ela diz "É dificil relembrar o que sofremos"

 "É difícil relembrar tudo o que sofremos.

Os meus pais sempre trabalharam muito.
Acho que o faziam por nós, mas eu nunca acreditei nisso. Por que raio uma coisa que era para o meu bem, me deixava tão triste? 

As melhores memórias de infância que tenho, são dos dias que passava com a minha avó, onde podia ser criança e brincar despreocupada.
Os meus pais saíam de madrugada e eu lembro-me, desde muito pequenina, de acordar durante a noite e fazer uma cama à porta do quarto deles, para que não pudessem sair sem mim. É claro que, quando acordava, eles já lá não estavam. 

Nas raras ocasiões em que estávamos todos em casa, eu tinha de manter o silencio, e acabava sempre por brincar sozinha na rua ou no meu quarto.  

Percebi bem cedo que as minhas chamadas de atenção só geravam gritos de reprovação e ameaças. Aprendi a isolar-me, a calar-me, a criar o meu próprio mundo porque tinha de viver em algum lugar.  

Tenho memórias nítidas desde cerca dos meus 4 anos. Na verdade, só havia alguma paz quando o meu pai não estava.

Demasiadas vezes quando o meu pai chegava a casa, sempre tarde, do vinho e das mulheres como dizia a minha mãe, ou dos amigos e clientes de futuros negócios como dizia ele, encontrava um motivo de discussão e batia-lhe. Chegava a ser a noite inteira naquele inferno, entre gritos nossos (meus e da minha irmã) e mais tarde só meus (quando ela decidiu ir estudar para outra cidade), muitas lágrimas e corridas.

A minha mãe corria à frente do meu pai com a minha irmã atrás dela, e eu era a última, que corria atrás do meu pai para o agarrar e não o deixar bater-lhes. 


Agarrava-lhe nos braços e gritava que não o fizesse, por favor, ou dizia-lhe que ele era um monstro e que o odiava, ou então ameaçava ligar para a polícia. Nunca liguei. A minha mãe pedia-me por tudo para não o fazer, quando eu tinha o telefone na mão trémula, como me pedia para não me meter. Aos poucos fui-lhe fazendo as vontades. 
 
Ele dava-lhe tareias enormes e eu comecei a interiorizar tudo, guardando tudo cá dentro como uma bomba relógio. 

As violações, por vezes, aconteciam depois de ele lhe bater. Eu saía da minha cama onde tinha estado a chorar e ficava a ouvir. Ouvia-a chorar e dizer não, a cama ranger, mas queria continuar a ouvir porque isso significava que ela estava viva. Só quando ele acabava e adormecia é que eu voltava para a cama, apenas para chorar o resto da noite ou adormecer exausta. Hoje sei que a minha mãe sabia que eu estava a ouvir. 

Por incrível que pareça, o meu pai nunca me bateu. Até hoje não sei porquê. Mas uma noite eu defendi a minha irmã, na cozinha, e ele veio na minha direção com uma faca apontada à minha barriga, e dizia que me matava. Não sei bem que idade tinha, mas era adolescente. Sei que corri, peguei numa caneca do escorredor da loiça e lha atirei à cara. Fugi. Elas já tinham fugido e eu estava sozinha. Ele ficou com uma pequena cicatriz e passou muitos dias sem me dirigir a palavra. A minha mãe fez-me sentir que tinha errado... 

Eu ia para a escola, todas as manhãs, à boleia do meu pai. Muitos dias chegava atrasada porque eles ainda discutiam, e pelo caminho ouvia-o falar mal da minha mãe, e chamar-me burra a mim. Eu era uma óptima aluna, notas máximas e nos quadros de excelência da escola. Tinha imenso potencial e uma paixão enorme por algumas áreas, uma série de sonhos. Que foram acabando quando a depressão se foi adensando. As notas pioravam, eu colocava uma máscara todos os dias para que ninguém notasse nada na escola. E consegui. Até já no secundário quando tentei suicídio e abandonei a escola. Fiquei algumas vezes de cama, sem falar, só chorava e gemia e morria de dores. 

Entretanto encontrei o meu companheiro de hoje, e descobrimos que o meu pai tinha outra filha, de outra mulher. A criança já tinha 4 anos, e a mãe tinha acabado de falecer com cancro. Foi a primeira vez que a minha mãe saiu de casa, e nessa altura ele já não lhe batia... Saiu porque ele queria que a menina viesse viver connosco em vez de ficar com os tios, e isso, isso a minha mãe não aceitou.
 
Saí da casa dos meus pais aos 18 anos, exausta e com a sensação de que, se ficasse, morria. Aceitei trabalhar com o meu pai, saí depois de muitas discussões, e voltei poucos anos depois, quando o meu filho nasceu. Tenho muitas feridas para curar com este homem, e faço esse trabalho diariamente. Muitas vezes fico na dúvida sobre se estou a fazer o que tem de ser feito para poder libertar-me verdadeiramente, em vez de fugir de novo, ou se estou simplesmente a seguir o padrão de mártir que aprendi.

Tantas vezes sinto que a forma como lidamos uns com os outros fazendo de conta que nunca se passou nada, é demasiado sufocante.


 M.

É mentira dizer que as crianças não notam, não vêem, não compreendem. Se elas se escondem e se calam é pelas razões que a M. explica tão bem. O que podemo fazer por elas? O que podemos fazer por estas famílias? Estes pais são loucos? Não, mas estão muito doentes e precisam ajuda. As consequências destas situações ficam connosco para sempre junto com a a consciencia de que ninguém fez nada para nos ajudar, as consequências não passam por si com o tempo. Negar isso é uma violência tão grande como a que já sofremos. 

A violência doméstica não é um assunto do casal, os filhos não são apenas responsabilidade dos pais, são de toda uma comunidade. As soluções punitivas dificilmente funcionam, precisam-se soluções reparadoras, curativas.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O agressor sou eu

Às vezes acho que é lixado entrar em loop tantas vezes. Mas de cada vez consigo sair um pouco mais rápido e ficar de olhos abertos durante a queda.  A ligação com todos os pássaros feridos não é por acaso. Porque também eu perco a voz, e a razão quando sou confrontada com alguém de coração fechado e isso é terrivelmente frequente na sociedade em que vivo. Reconheço que só sei explicar a quem já compreende, não sei lidar com agressividade a não ser tornado-me cruel e fria, desligando-me dos sentimentos. E tenho imensa vergonha quando faço isso. Tenho medo de me tornar o agressor. 

Já não é o outro que me maltrata, agora o agressor sou eu. Quem ainda não se ouve, ainda não se cuida, ainda não se respeita, ainda não toma tempo para cuidar de si. Tenho a tarefa de abraçar o agressor em mim. No meu trabalho tenho olhado para o agressor, a sua história, a sua dor e a necessdiade de ser amado. Deixa ver se consigo levar isso para dentro e cuidar do meu agressor interior, do que tem uma vítima de estimação: eu. E tentar fazer a ponte e criar uma aliança entre estas duas partes minhas que tentei abafar cuidando só e apenas dos outros, tornado-me a salvadora: a vitima e o agressor. Tentar que essar partes compreendam que fazem parte da mesma alma, e não podem viver uma sem a outra.
 
E é para cuidar dessa criança que quero aprender a defender-me, a defendê-la, desdemonizar (esta palavra existe?) a minha parte que se zanga que se enfurece, que sabe lutar, e como...

Espirais e mais espirais..

Há muitas coisas que costumo dizer aos clientes mas é incrivel o quão fácil é esquecer-me quando entro em modo pânico. 

Uma das que não devia esquecer é a de que e evolução é um processo espiralado, quando pensamos que estamos a andar em circulos porque “recaímos” no mesmo problema, pode querer dizer que estamos a voltar ao mesmo ponto na volta seguinte da espiral. 

A maior parte dos bloqueios que temos são demasiado dolorosos para se poderem dissolver de uma só vez, é preciso voltar e voltar de cada vez um bocadinho mais fundo, um bocadinho mais claro.
 
Também há detonadores, coisas pequenas, que nos levam de volta a sensações intoleráveis da infância. 

Sabem aqueles momento em que nos comportamos “como se” tivessemos três anos, ou dez anos, ou fossemos adolescentes...?   

Por muitas voltas que se dê as estratégias de criança vão estar sempre lá quando o stress é demais. Quando nada funciona entramos em piloto automático. 

Tenho a sensação de que imensas vezes não queremos lembrar por ter medo de voltar a cair dentro do caldeirão. E é sensato. 

È dificil olhar para esta criança amuada e violenta, sobretudo apavorada e não fugir. Ficar comigo/ela e reconhecer que não está maluca.  Destapar a ferida. Mesmo com a vergonha e a sensação de possivel humilhação.